Neuma Gonçalves da Silva, ou simplesmente Dona Neuma, primeira dama da Mangueira, partiu para o infinito em julho de 2000. Certamente virou estrela, daquelas que iluminam a constelação da Estação Primeira dos trens que partem da Central do Brasil para cortar os subúrbios cariocas, berço do samba.
A mulher que nasceu no dia 8 de maio de 1922 em Madureira, foi, antes de tudo, uma valente. Soube brigar até o fim pela sua escola, as suas crenças e os mais genuínos princípios nascidos da solidariedade e da amizade, deixando no ar apenas um pedido, em forma de prece: “Não deixem o samba morrer”. E o samba para Dona Neuma não se resumia aos desfiles, que levam meses para se transformarem em realidade e encantam o mundo, mas também aos projetos do Mangueira do Aamanhã, de educação, dos esporte e até da música, da boa música popular brasileira, na esperança de que essas criaças do subúrbio vivam dias melhores.
Dona Neuma, filha do primeiro presidente oficial da Mangueira, Saturnino Gonçalves, virou ainda menina primeira-dama da Estação Primeira, o título que orgulhosamente ela carregou por mais de seis décadas em 78 anos de existência, ciente de que seu papel era o defender as cores da escola e sua comunidade, a Mangueira, por isso andava tão preocupada e pedia: “Não deixem o samba morrer”.
Aquela mulher de fala mansa, cheiinha e firme nas suas posições, me proporcionou uma daquelas surpresas que marcam pra sempre a nossa vida. Foi numa noite de 1992, época em que lecionava Produção Gráfica e Criação Publicitária no curso de Publicidade da Faculdade Helio Alonso (Facha), no bairro de Botafogo, bem em frente ao Pão de Açúcar, que, da sala de professores, podia ser contemplado. Comecei com aulas em 1989, como complemento ao salário que recebia na Última Hora e que sempre atrasava apesar da solidariedade do Milton Coelho da Graça, então meu chefe e com quem muito aprendi. E segui dando aula até o dia daquee encontro com Dona Neuma.
Eu havia sugerido aos alunos que trabalhassem uma campanha institucional de valorização do samba, para estimular a criatividade e eu ter como testar o uso que faziam de texto e recursos gráficos. Um daqueles alunos, filho da Gigi da Mangueira (a passista que virou uma lenda), me disse que Dona Neuma era sua madrinha e era boa de contar histórias. Podia, por isso, ajudar a turma a entender um pouco do riscado do samba. Os dois filhos de Gigi eram meus alunos, e os dois eram afilhados de Dona Neuma. Para completar o ritmo, o filho do Ségio Cabral e da Magali (uma mulher que cuidou e ajudou a preservar o Museu do Primeiro Reinado, com paixão nos olhos e nas palavras), também era meu aluno nessa época, embora em turma diferente dos da Gigi. Estava eu, portanto, rodeado de samba e história por todos os lados
Dona Neuma, então, a pedido de seus dois afilhados, me deu a honra de comparecer numa sala de aula simples, no horário normal da minha aula, para conversar com meus alunos. Conversar não; dar uma aula de cidadania e samba durante quase duas horas. E, a turma que não era fácil, sequer piscava os olhos, bebendo cada informação que Dona Neuma, com profunda generosidade, nos repassou naquela noite.
Primeiro, a primeira-dama da Mangueira me emocionou ao dizer, ao lado dos afilhados, que aquela era prmeira vez que iria ocupar a cadeira do professor. “Ainda mais de faculdade!”, dizia, orgulhosa de estar ali, sabendo que seria ouvida e respeitada como uma academia viva, muito mais importante, apesar da sua extrema humildade, que acadêmicos entediados e entendiantes que não sabem explicar o samba e a vida dos subúrbios porque não sabem sabar e alguns poucos sabem viver. Procurei, depois de apresentá-la aos meus alunos, intermediar o mínimo possível a sua conversa com a turma, como deve fazer o repórter quando entra num mundo novo e novas informações se abrem diante de seus olhos e ouvidos, e é mais recomendável ouvir do que falar. Aprender do que querer ensinar.
Dona Neuma disse que não se sentia à vontade na minha mesa, mas foi se soltando aos pouco. E falou. Falou da importância das baianas, quituteiras que fazem a comida da escola, dos compositores da velha guarda e de como o samba de terreiro era importante para chegar no que ela mais gostava, o samba-canção, que depois pode ser a base de um enredo daqueles que as escolas cantam na avenida e servem de combustível para a alegria. Disse do amor que tinha Cartola pela escola que havia fundado, imaginando as pastorinhas do Largo do Machado. Falou de Carlos Cachaça, com quem dividiu as dores e o carinho da amizade que se prenuncia para toda vida. Das passistas como Gigi, que todos os dias ensaiavam e não se recusavam, o que ela achava o mais importante, a ensinar as mais novas a tornarem-se estrelas da passarela. Era isso o que emprestava a Gigi mais brilho.
Fez aos meus alunos um pedido naquela noite quente, como o são as noites cariocas da primavera que procura adiar o verão: “Não deixem o samba morrer”.
Não resisti e perguntei: Quem está matando o samba?
A resposta, ainda me parece nítida na retina da memória, e foi mais ou menos essa:
Dona Neuma – Essas igrejas evangélicas vão invadindo o morro e acabando com nossas tradições. Dizem que carnaval e´festa do demônio, depois dizem que tomar cervejinha é um pecado, que sambar é feio e tem gente que vai acreditando nisso. E vai deixando as tradições, a vida de lado. Fazem isso para que sobre mais dinheiro no bolso dos crentes, que acreditam nisso e entregam tudo o que economizam para os pastores. É para isso que eles cortam a cervejinha e a roda de conversa da turma do morro. Só para sobrar mais para o pastor. Vejo ao meu redor: ficam ainda mais pobres, mas dizem que estão felizes porque, agora, têm Jesus no coração. Compram isso, dando dinheiro para o pastor que quer cada vez mais. Eu também tenho Jesus no coração. Só que, com alegria, com samba e a cervejinha. Com a amizade de toda gente, ajudando quem me procura. O samba está muito mais próximo do bem do que aquela gritaria sem ritmo dessas igrejas. Aquela coisa sem graça desses pastores de só querer o dinheiro do outro sem nada oferecer, nenhuma escola, nem uma quadra esportiva, nem uma piscina comunitária, nada, nada. Isso está me preocupando, me tirando o sono. É por isso que peço que vocês não deixem o samba morrer. Eu vou brigar por isso até o fim, mas é preciso que outros briguem. Continuem brigando quando eu não tiver mais força.
Me confidenciou quantas vezes eu a convidasse para ir à faculdade falar com meus alunos, ela iria. Só precisaria de buscá-la na Mangueira, levar de volta e, depois da aula, tomar uma cervejinha. Foi o que fizemos naquela noite.
Da minha parte e acredito que daqueles alunos – e eram muitos que lotaram a sala de aula da Facha, Dona Neuma pode ficar despreocupada. Continuaremos a defender o carnaval e as suas tradições. Naquele ano, as igrejas novas, que foram surgindo por todos os poros na porteira aberta pelo “bispo” Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, acaba bom cinemas e áreas de lazer, transformando-as em templos. O que assustava especialmente as comunidades suburbanas, onde essas igrejas se proliferam mais e onde a educação, o esporte, o lazer e tudo que sonhava Dona Neuma ainda parece um pouco mais longe.
Saudade de Dona Neuma. Saudade dos meus alunos aos quais, se lerem ou tiverem acesso a essa revista digital, peço que dêem notícia pelo e-mail carlosfranco@revistapublicitta.com.br
Este texto foi postado em 18 de fevereiro de 2007, às 18h10