Marcello Serpa deixa o comando da AlmapBBDO, assim como seu sócio José Luiz Madeira, com a venda do controle para a BBDO. A notícia mais comentada da semana marca o fim de uma era, de uma agência que os dois construíram juntos, conquistaram prêmios como por duas vezes agência do ano em Cannes e impuseram um padrão de qualidade e excelência reconhecido por clientes e concorrentes. Aos amigos, Marcello Serpa mostra que, além de ser um artista gráfico genial, que adora trabalhar com imagens, também tem um bom texto. A sua carta de despedida, ou melhor de começo de nova vida é emocionante, palavra por palavra. É esse o recado, em forma de carta, que ele deixou nas redes sociais onde coleciona amigos.
Marcello Serpa
Quando fiz 30 anos, um conto de Tolstói chegou às minhas mãos: “De quanta terra precisa o homem?” conta a história de um pequeno fazendeiro russo que se dizia muito feliz no seu lote de terra. O diabo escuta o camponês e resolve, por pura diversão, despertar nele a cobiça.
O camponês, agora ansioso, passa a comprar todos os lotes e fazendas das redondezas. Quando se torna o maior latifundiário da região, ouve falar sobre uma tribo muito distante que estava distribuindo terras.
Uma vez lá, ele é desafiado pelo chefe da aldeia. Por um valor simbólico, o camponês teria toda a terra que conseguisse percorrer a pé durante um dia. Mas deveria retornar ao ponto de partida antes do pôr-do-sol ou perderia tudo o que havia conquistado.
Ele sai marcando a terra desde o nascer do sol. Ao meio-dia deveria voltar para dar tempo de chegar à aldeia antes do poente.
Com o sol ardendo no meio do céu, ele decide caminhar mais um pouco e marcar uns alqueires a mais: “Depois eu acelero o passo e chego na hora”, pensou. Quando finalmente resolve voltar, o sol já baixava mais rápido do que suas pernas podiam acompanhar.
Ele corre desesperado, com medo de perder as terras conquistadas. Corre com todas as suas forças. Corre tanto que, ao chegar de volta à aldeia, o sol se põe e ele cai morto aos pés do chefe.
Este, na verdade o próprio Diabo disfarçado, desdenha do camponês com um sorriso nos lábios: “Queria tanta terra, mas acabou com apenas um lote de 2 metros de comprimento por um de largura”.
Na época em que li este texto, ele provocou em mim uma epifania ou o que no mercado publicitário a gente costuma chamar de Insight: com 30 anos decidi que aos 50 eu daria uma olhada para cima e me perguntaria se era a hora de voltar.
Hoje, aos 52, olhei para o sol e senti que meu meio-dia havia chegado.
Corri, andei e marquei meu território nesses 34 anos de propaganda e 22 de Almap. Cheguei onde minha imaginação de garoto nunca alcançou.
É hora de voltar.
Não quero ser obrigado a correr freneticamente sem mais me lembrar o motivo.
Muito menos quero dar mole para o Demo.
Chegou a hora de sair da agência que o meu irmão, amigo e sócio José Luiz Madeira e eu construímos juntos.
Em 1993 o Alex Periscinoto, num gesto de grandeza inédito até então, nos chamou para sucedê-lo na Almap. Ali começava uma relação maravilhosa com a BBDO.
O lendário Allan Rosenshine, graças à visão do nosso amigo EduardoVargas, acreditou que poderíamos mudar o futuro de uma agência com um passado glorioso.
Alex, Allan e Eduardo nos deram uma chance, nós a usamos para mudar nossas vidas.
Deixamos agora a BBDO, mas mantemos os amigos que fizemos.
Obrigado ao Andrew Robertson pela liderança sempre exercida com uma leveza e bom humor improváveis numa indústria tão dura quanto cruel.
Obrigado ao parceiro de tantos anos David Lubars e a todos os membros do board da BBDO pelas horas que passamos juntos tentando descobrir novos caminhos para as nossas agências e dividindo experiências com quem faz propaganda boa como nenhuma outra rede no mundo.
Quando começamos, confesso que o Zé e eu éramos bem humildes. Queríamos apenas fazer o melhor trabalho do mundo.
Mas queríamos fazê-lo sem que isso custasse nossos princípios e, por favor, sem o sofrimento de quem acredita que só suando sangue é possível conquistar o sucesso.
Queríamos manter a alegria de trabalhar numa das mais divertidas profissões do mundo, a publicidade. Uma profissão em que o erro não mata ninguém e que o acerto significa o sucesso de marcas, colocando o círculo virtuoso das empresas para rodar.
Agora que inicio o caminho de volta, posso olhar com calma toda esta terra que marquei. Acho que, sem a falsa humildade dos politicamente corretos, chegamos lá.
Rimos muito, ganhamos muitos clientes maravilhosos e conquistamos todos os prêmios que existem por duas vezes, pelo menos. Acredito que deixamos um trabalho que não fará feio no melhor teste de qualidade que existe: o teste do tempo.
Fizemos amigos incríveis nos clientes, atraímos os melhores talentos da publicidade brasileira. Ajudamos a formar pessoas, que hoje estão criando e dirigindo agências pelo mundo afora.
Em cada uma delas imagino uma pequena semente da Almap. Uma semente que tem no seu DNA a certeza de que no Brasil dá para fazer um puta trabalho sem abrir mão da integridade e nem as pernas para a mediocridade.
Sair da Almap, do convívio diário com as pessoas que adoramos, é o exercício máximo do desapego. Dois monges budistas construindo de grão em grão uma mandala de pó colorido para, depois de 22 anos, abrir a janela e deixar o vento entrar.
Caminhando de volta com calma, vejo também que deixamos um legado que vai muito além do trabalho benfeito. Deixamos um time incrível para tocar a agência a partir de agora, do jeito deles.
O Luiz chegou à Almap há 18 anos com brilho nos olhos e uma faca na boca. Com o tempo tiramos a faca, porque ele poderia acabar machucando as pessoas em volta. Mas tenho certeza de que, com o brilho nos olhos e seu jeito desassombrado, ele vai levar a agência longe.
A Cintia começou na Almap e tornou-se um dos melhores profissionais de planejamento que já vi atuar. E o Rodrigo, que chegou para cuidar do cofre, provou ser ainda muito mais talentoso para negócios e relacionamentos.
Faço o caminho de volta feliz. A propaganda me deu tudo que tenho e a Almap me deu tudo o que amo. Uma agência fantástica, amigos para a vida inteira e prêmios que podem alimentar o ego por umas três gerações de Serpas.
Pelo caminho, minhas filhotas maravilhosas Fabiana e Sophia se transformaram em dois mulherões e ainda ganhei na loteria ao encontrar na Almap a Joanna. A alma gêmea que me deu a chance de ser pai novamente da Maria e do Paulo.
Vamos nos encontrar por aí. Feliz da vida, eu estarei caminhando pelas terras que marquei com um enorme sorriso no rosto.
Um sorriso maroto de quem sabe que a tarde está apenas começando.