Por Carlos Franco
O britânico Steve Cutts, ilustrador e animador que já assinou trabalhos para Coca-Cola, Sony, Toyota e Reebok, vem se notabilizando na produção de pequenos filmes de humor ácido e direto, sempre reveladores do mundo em que vivemos hoje. O resultado é sempre espetacular. O filme que embala a bela canção Are You Lost In The World Like Me? (numa tradução literal “Você está perdido no mundo – como eu?”), de Moby (Richard Melville Hall) & The Void Pacific Choir, o mais novo projeto do músico, está fazendo estrondoso sucesso nas redes sociais.
Postado no último dia 18 de outubro, apenas no YouTube a obra atingiu a marca de mais de 2,6 milhões de views na manhã deste primeiro dia de novembro. Mostra exatamente esse mundo conectado em que vivemos, onde as relações por meio de smartphones substituem os vínculos reais. As pessoas deixam de existir fisicamente, passando a viver virtualmente. Tempos sombrios, sem conteúdo, mas com muita informação desde o prato que será consumido, ao gato, cachorro e papagaio. As selfies sorridentes, mesmo quando, no fundo, estamos tristes, perdidos nesse mundo em declínio que Cutts mais uma vez dá vida com uma animação simples e direta, a sua maior virtude, assim como a de Moby e seu projeto “The Void Pacific Choir”.
Susan Sontag e o título aqui utilizado
Para o título desta reportagem tomei emprestado o de uma obra da norte-americana Susan Sontag que resenhei para o Caderno Ideias, do Jornal do Brasil, que a publicou em 7 de janeiro de 1995. Ocupava com outra resenha, assinada por Caio Fernando Abreu, uma página dupla do caderno com uma bela ilustração de Loredano a dividir os dois textos. Ambos os textos e livros resenhados tratavam do drama da AIDS na sociedade.
Saudades do Jornal do Brasil que não existe mais, de Caio Fernando Abreu que virou estrela e, talvez de mim mesmo que, com mais garra e energia, mais leve sem o peso de 21 anos a mais nas costas, ainda era mais destemido na luta do que sou hoje, ainda que os dias sombrios em que vivemos agora exijam coragem e destemor. Mas, do luto à luta, da saudade daqueles que se foram, o Jornal do Brasil e o Caio, temos que seguir em frente, autopsiar a sociedade para que, da desesperança, brote a esperança de dias melhores.
O terror em tempos de aids
Carlos Franco
Susan Sontag traça panorama sombrio da sociedade dos anos 90 no livro Assim vivemos agora. Como uma cirurgiã, ela disseca a Aids por meio das reações de um núcleo eclético de personagens que passam a conviver com a doença a partir da contaminação de um deles.
O resultado? Uma espécie de quebra-cabeça, onde a uma frase de um personagem se soma outra e assim sucessivamente, revelando ao leitor a epiderme e as entranhas de uma sociedade sem sonhos e ideologia, que desaprendeu a se conjugar no plural. Não que os personagens de Susan sejam frios e solitários, eles até tentam demonstrar solidariedade, carinho e amizade, mas em doses insuficientes para tornar o livro mais suave. Susan quis dar um soco no cotidiano dessa sociedade da qual é parte integrante e ativa na esperança de que saia do singular e acorde para o plural.Na sua autópsia, ela põe o doente como um goleiro na hora do pênalti. Mesma situação em que se encontram os personagens que o cercam. A única salvação é o jogo em equipe. Todos tentam, mas a fragilidade de suas vidas os impedem de se darem mais, de dialogar. Não existe solidão maior do que a do goleiro diante do pênalti, são segundos que contam como horas intermináveis.E se a melhor forma de romper o temor e medo da morte e do gol iminente é o ataque, ele não existe. Os personagens de Susan, ao contrário dos de outros escritores, como a Clarice Lispector de Um sopro de vida, são tomados pelo tédio amargo da acomodação. Não reúnem todas as suas forças para vencer a morte, ao contrário, passam a conviver com ela como um fim em si mesma, uma previsibilidade como a que ao final de cada dia surgirá a noite e ao final desta o dia.E é essa a virtude do livro de Susan, a de usar um espelho como elemento de reflexão, fazendo com que na última página o leitor se pergunte: é assim que vivemos agora? Na indagação reside toda a esperança da autora.O texto é outonal. Nem por isso, totalmente triste. É obra para ser lida com sofreguidão. O tempo maior será dedicado à reflexão. Outros, como Camus em A peste, analisaram o comportamento da sociedade diante do temor da morte. Mas Susan não quer ir tão longe, arranha a superfície do tecido, fere e injeta o vírus da desesperança. É um soro, positivo, para irrigar com mais vida a vida em sociedade.
Publicado em 07/01/1995 Fonte: JORNAL DO BRASIL