Jeannie é um gênio — ou a peleja entre a arte de editar e a arte do romance.
Por Luiz Schwarcz*
O perigo de escrever textos deste tipo com a minha idade é transformar o saudosismo num refrão. Se faço isso, me desculpem, leitores, mas não consigo deixar de sentir falta de algumas regras de conduta que marcavam o mercado editorial quando eu iniciei como editor. Naquela época, os laços entre autores e editores eram de fidelidade, e um autor deixava uma editora por um bom motivo, principalmente em razão de algum problema na relação, que não aparentava ser de possível resolução. Eram tempos em que não havia ou havia poucos leilões, a história pregressa entre autor e editor era respeitada e levada em conta, muito mais do que nos nossos dias. Havia uma coisa chamada “primeira opção”, que permitia ao editor garantir a continuidade do trabalho com um autor, enquanto estivessem satisfeitas as duas partes. Formado nos velhos tempos, me acanho ao abordar um autor de outra editora. Em geral só o faço ao ter notícia de algum desejo do autor de mudar de casa, ou quando esse desejo é expresso diretamente e sou procurado pelo autor ou seu agente.
Mas quem usa o termo “velhos tempos” já entrega seu coração e seus sentimentos e continua seu argumento com o chavão mais comum, e que uso aqui despudoradamente sem uma alternativa melhor: o mundo mudou. Hoje o respeito à história pregressa entre autor e editora é mercadoria rara, não só no caso dos autores, mas também dos editores. Cortesia, respeito ou cavalheirismo moldaram a personalidade de editores por décadas, tendo sido parte do manancial de sedução que nós, profissionais do livro, tínhamos à nossa disposição, para conquistar, legitimamente, novos autores. Mas mesmo o que não é sólido se desmancha no ar.
Os editores sempre pecaram pela vaidade excessiva, afetados pelo poder e pelo glamour de sua posição profissional. No entanto, os grandes editores em geral souberam controlar seus egos, pois para chegar a uma posição de destaque em nosso mercado é preciso reconhecer um princípio básico: na feitura de um livro há um só gênio em ação, e este gênio é o autor. O título do filme sobre Max Perkins que está em cartaz — baseado na biografia publicada aqui pela Intrínseca e que já comentei várias vezes — é bastante esclarecedor: O mestre dos gênios. Ainda não assisti ao filme, mas no mínimo a escolha dos superlativos está correta. Um dos lados pode chegar, no máximo, ao qualificativo de mestre; o outro, ao de genial. É interessante notar que o mestre de um gênio não é necessariamente genial, e isso é o que muitos editores esquecem. Recentemente li uma entrevista de um ótimo editor que atribuía ao colega responsável pela área editorial de sua empresa a capacidade de ter cinco ideias geniais por dia. Trata-se, é claro, do uso de expressão corriqueira, mas, com a permissão da brincadeira, do exemplo de um editor super-homem, ou de um autor frustrado, instalado na profissão errada, na qual a presunção da genialidade não tem espaço e, mais, pode até atrapalhar. Se não entendermos que a genialidade está na arte e não no comércio e na edição, poderemos pôr grandes editoras ou carreiras a perder.
Recentemente li alguns dos ensaios de um editor que merece todos os superlativos (menos o de genial) e que intitulou seu livro de The Art of the Publisher. Seu nome é Roberto Calasso, e ele é o fantástico editor da Adelphi, casa italiana sediada em Milão. Sua editora é uma das duas melhores da Itália e uma das melhores do mundo. Mesmo assim, com toda a minha admiração pelo maravilhoso catálogo que Calasso construiu, não consigo concordar com o título e a essência do seu livro. Roberto foi capaz de montar uma linha editorial impecável, como se sua editora fosse uma pequena joalheria, com peças preciosas distribuídas aqui e acolá. A Adelphi redescobriu Sándor Márai e o transformou num enorme best-seller, na Itália e depois no mundo. Relançou Georges Simenon, mostrando a genialidade do autor belga, e levou seus números de venda às alturas, nunca alcançados em nenhum país do mundo. Mesmo assim, o argumento de Calasso, que explicarei a seguir, só se justifica por ele próprio ser um grande autor e artista e, dessa forma, haver transferido sua capacidade pessoal ao papel de editor. Trata-se de uma transferência de atributos quase freudiana, entre um autor e um editor, que são uma pessoa só.
Calasso justifica que o trabalho de editor seria um tipo de gênero literário, podendo assim afirmar que há uma arte na edição. Seus dois exemplos são Aldus Manutius, um editor do século XV que, segundo ele, inventou a forma do livro como hoje conhecemos. Aldus criou o livro como objeto, sendo o precursor dos prefácios e de todos os textos que acompanham os volumes até os dias de hoje. No caso, ele era o responsável por escrevê-los com a erudição do Renascimento. Segundo Calasso, ele inaugurou o que viriam a ser os textos promocionais e introdutórios que utilizamos nas edições contemporâneas.
Temo que se Manutius visse no que sua “arte” se transformou, teria um colapso cardíaco. O outro exemplo de Calasso é um editor alemão chamado Kurt Wolff, que publicava, no início do século XX, jovens autores de alta qualidade, e para tal criou uma série de livros superausteros, numa coleção que chamou de “O dia do julgamento”. Suas edições circularam durante a Primeira Guerra Mundial, e Calasso chama a atenção para o nome apropriado da coleção, naquele contexto. Foi nessa série que foram publicados A metamorfose e outros textos de Kafka, além de grandes autores como Georg Trakl e Robert Walser. A arte de Wolff se aproxima da de Manutius no cuidado com a forma e na formação do catálogo. Isso é o suficiente para meu amigo Calasso considerar a edição uma arte.
Lamento discordar. Há sempre a possibilidade de usarmos o termo arte, assim como o termo gênio, de maneira indiscriminada e metafórica. Pode haver maestria na capacidade de confecção de um livro. Há editores que certa vez tiveram uma ideia genial e com ela mudaram o mercado — refiro-me a Allen Lane e a Caio Graco Prado, por exemplo, e peço que vejam o meu post a esse respeito. Mas a genialidade na vida editorial está na literatura, exclusivamente nas mãos e na mente dos escritores.
Comparemos os argumentos — que aqui tive de simplificar — de Calasso com um outro livro que li recentemente: A arte do romance, de Milan Kundera. Nele, o grande escritor tcheco mostra que o romance moderno “mantém o mundo da vida sob a iluminação perpétua e nos protege contra o esquecimento do ser”. Ainda segundo Kundera, o romance conhece o inconsciente antes de Freud, a luta de classes antes de Marx e a fenomenologia antes dos fenomenólogos. Por concentrar em si a sabedoria da incerteza, o romance é a forma mais profunda de conhecer o ser no mundo moderno.
Não tenho como concordar mais com o genial Kundera e discutir com o mestre Calasso, um dos maiores editores que tive a oportunidade de conhecer. (Não falo aqui do Calasso escritor, por suposto, a quem atribuiria sem dúvida o termo “genial” por causa de As núpcias de Cadmo e Harmonia, K. e tantos outros livros de sua autoria.)
A genialidade dos editores, meus amigos, tem mais a ver com seriados de televisão dos anos sessenta, com lâmpadas maravilhosas de onde saem gênios fantásticos, do que com qualquer parâmetro de modéstia fundamental à prática de nossa profissão.
*Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Texto originalmente publicado pelo blog da Companhia das Letras, onde o autor tem uma coluna quinzenal.