Os depoimentos da campanha “Nosso presente é o amor” que o movimento Livres & Iguais da Organização das Nações Unidas (ONU) lança neste fim de ano foram gravados em uma manhã de inverno em Brasília. Com o apoio da coletiva Corpolítica e do grupo Mães Pela Diversidade, a campanha promoveu um encontro de pessoas LGBTI, seus pais e mães para discutir a importância do apoio familiar. Com histórias de superação e empoderamento, o vídeo mostra que, em se tratando das famílias, o amor e o afeto são capazes de superar todos os obstáculos.
Rebecca Religare tem 30 anos, vive em Brasília (DF) e é ativista dos movimentos negro e LGBT. Como mulher negra e lésbica, já sofreu diversas discriminações e quebrou muitos tetos de vidro para chegar onde está. No mundo acadêmico e profissional, acumulou inúmeras conquistas: é funcionária pública concursada, formada em Letras e está concluindo um mestrado em Sociologia e uma graduação em Direito na Universidade de Brasília. Mas uma das primeiras barreiras que ela precisou vencer foi dentro da própria casa.
Não foi nada fácil quando Rebecca se abriu com a família em relação à sua orientação sexual. Em setembro de 2009, foi expulsa de casa após uma discussão. “Eu lembro até hoje. Estava de vestido, com uma mochila com os livros. Tinha voltado da UnB e ido a um show com minha namorada na época”.
Rebecca sobreviveu com determinação e resiliência. Morou na casa de vários amigos e deu aulas particulares para se sustentar enquanto não passava em um concurso público. A aprovação veio dois meses depois. Disso tudo, sua maior conquista foi a liberdade para viver sua vida e ser feliz do jeito que queria e precisava.
A reconciliação com a família demorou um pouco mais. Foram cinco anos para que Rebecca e a mãe reatassem os laços. “Hoje eu e minha família estamos bem melhor. Minha mãe já trata minha companheira, Mariana, como sua nora. Ela frequenta a minha casa e eu frequento a casa dela, com a família.”
Rebecca tem propriedade para afirmar o quão difícil pode ser o processo de “sair do armário”. “Quando a gente sai do armário, a nossa família também sai. Ou, pior, ela se vê na necessidade de sair. E não é fácil para nenhuma das partes.”
Muitas vezes, é a consciência da homofobia e da transfobia, da violência e discriminação que aguardam os filhos e filhas na rua que torna a saída do armário mais difícil para os familiares. Priscila Morégola, presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB/DF, diz que a situação é muito difícil para a família. “Todos sofrem, mas todo mundo vai entendendo como ajudar. Às vezes a família sofre mais não é pela saída do armário em si, mas pelo medo de o que o filho irá sofrer fora de casa.”
Avelino Mendes Fortuna, 60 anos, viúvo e agrimensor aposentado, conhece com profundidade as dores da LGBTI-fobia: seu filho foi assassinado em 2012, em um crime com sinais claros de fundo homofóbico. Lucas Fortuna era jornalista, ativista LGBTI e árbitro esportivo. Ele tinha apenas 28 anos – e apesar de ter sido mais um jovem a entrar para as estatísticas da LGBTI-fobia no Brasil, Avelino se recusou a deixar a memória do filho desaparecer. Desde então, é também ativista pelos direitos humanos das pessoas LGBTI.
Rebecca sabe que sua história de superação pessoal – e mesmo o final redentor com a família – pode ser exceção e não é a realidade de muitas outras pessoas LGBTI. “Cada um tem um jeito, e eu não digo que quando eu saí de casa foi a coisa mais maravilhosa do mundo. Mas em face de algo com o que eu não conseguia mais lidar, eu consegui reagir a várias coisas. E sei que isso também afetou a minha família.”
A discriminação e a violência sofridas no ambiente familiar, ou mesmo o corte de relações, impõe um sofrimento emocional e psicológico que muitas vezes impele as pessoas LGBTI a uma situação de vulnerabilidade e marginalização, inserindo-as em um ciclo de exclusão social e de pobreza.
Especialista independente
A ONU reconhece que a orientação sexual e a identidade de gênero, reais ou percebidas, são fatores importantes que estruturam, informam e reforçam desigualdades e impactam negativamente a fruição plena dos direitos humanos da população LGBTI.
Em 1994 o primeiro órgão das Nações Unidas pronunciou-se oficialmente, reconhecendo que a orientação sexual poderia ser considerada base para discriminação, vedada pelo direito internacional dos direitos humanos. Tratava-se do caso Toonen vs. Austrália, no qual o Comitê de Direitos Humanos recomendou a revogação de legislação que criminalizava relações consensuais entre adultos do mesmo sexo na Tasmânia.
Desde então muitos avanços já foram feitos. Em 2016, a ONU criou um cargo de especialista independente voltado para a proteção contra a violência e a discriminação motivadas por questões de orientação sexual e identidade de gênero.
Vitit Muntarbhorn foi apontado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU para o cargo, cujo mandato é de três anos, para monitorar a situação de pessoas LGBTI no mundo inteiro, investigando violações de direitos humanos e avaliando a implementação de mecanismos internacionais de proteção aos direitos humanos já existentes. Apesar de ainda não dispor de uma legislação específica que tipifique e preveja uma punição a crimes de ódio de fundo LGBTI-fóbico, o Brasil foi um dos signatários da proposta.
Em discurso proferido no Conselho da Europa, em Estrasburgo, em novembro deste ano, o especialista independente definiu os cinco temas prioritários do mandato: descriminalização; despatologização; reconhecimento de status; liberalização cultural e incentivo à empatia por meio de processo educacional; e socialização sensível aos direitos humanos, da infância em diante.
“O turbilhão de violência e discriminação, em suas múltiplas formas, frequentemente inicia-se em casa, na escola, na comunidade e no ambiente ao redor, com violações reproduzindo violações”, disse Vitit Muntarbhorn. Ele é professor de direito internacional em Bangkok e já trabalhou em diversas Comissões da ONU.