POR CAMILA MACIEL/REPÓRTER DA AGÊNCIA BRASIL
Como fazia todos os dias, Manoel Fiel Filho acordou cedo, banhou-se, tomou café e foi para a Metal Arte, no bairro da Mooca, na cidade de São Paulo, onde trabalhava como prensista. Era uma sexta-feira, 16 de janeiro de 1976, e, por volta do meio-dia, dois homens, sem qualquer ordem judicial, o retiram do trabalho, vão com ele até a sua residência, na Vila Guarani, revistam a casa em busca de exemplares do jornal Voz Operária, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), nada encontram e, sob os olhares apreensivos da mulher, Thereza Fiel, levam o metalúrgico para o Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). “Ele me deu um beijo na testa e foi embora. Eu falava: ‘Não leva ele, não”, disse Thereza, ao lembrar que o marido chegou a dizer que voltaria logo. “E ele nunca mais voltou”.
Após o sequestro de Fiel, Thereza reuniu toda a família, incluindo as duas filhas, e peregrinou por várias delegacias de polícia em busca de informações do companheiro. “Um conhecido da Polícia Civil disse que ele estava na Operação Bandeirantes [grupo criado em 1969 pelo Exército, com apoio de empresários para coordenar todas as operações dos órgãos de repressão]e que só se entrava lá com ordem do presidente da República”.
Thereza soube da morte do marido no dia seguinte, sábado, 17 de janeiro de 1976. Por volta das 22h, um carro parou em frente à casa. “Desceu um fulano com um saco de lixo preto na mão”. Ele disse: ‘‘Essa aqui é a roupa dele, e ele está morto’.”
Um bom marido
Um marido trabalhador e amoroso. É assim que Thereza, hoje com 83 anos, relembra Manoel. “Trabalhava na firma e ainda me ajudava em casa. Era bom demais. Atencioso, me ajudava bastante. Adorava as filhas. Marido igual àquele não se acha mais”, disse, emocionada, durante a entrevista concedida à Agência Brasil, em Bragança Paulista, a 90 quilômetros da capital. Thereza relatou, logo no início da conversa com a reportagem, uma coincidência. “Hoje [7 de janeiro] era aniversário dele. São lembranças, né? A gente fazia um bolo. Comemorava em casa mesmo”. As recordações sobre o marido pareciam estar mais vivas naquela manhã.
Manoel, natural de Quebrangulo, Alagoas, terra natal do escritor Graciliano Ramos, festejava os 49 anos. “Eu lembro que fiz um pavê. Ele adorou. Ele não gostava muito de comemorar, mas gostava de estar com família”, disse a filha Márcia. A outra filha, Aparecida Fiel, de 60 anos, também lembrou o zelo do pai em comprar frutas frescas para a filha mais velha, que estava grávida. “Ele não conheceu nenhum neto”.
Manoel saiu de Quebrangulo em 1950 em busca de uma vida melhor em São Paulo. Trabalhou como padeiro e cobrador de ônibus antes de se tornar metalúrgico, exercendo a atividade de prensista na mesma empresa por 19 anos. Embora a família não soubesse, ele era responsável pela difusão do jornal Voz Operária, do Partido Comunista Brasileiro, e pela organização do partido entre os operários das fábricas do bairro da Mooca, conforme relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV).
A morte do metalúrgico ocorreu menos de três meses após o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, no mesmo local e em circunstâncias parecidas, sob a versão oficial de suicídio. Embora não tenha provocado a mesma comoção social que marcou a despedida do jornalista, a morte de Manoel Fiel Filho causou o afastamento do comandante do 2º Exército, general Ednardo D’Ávila Mello, quatro dias depois do assassinato do metalúrgico. “Meu marido morreu e salvou a turma que estava lá [no DOI-Codi]”, disse Thereza, ressaltando que o episódio provocou mudanças no tratamento dado aos presos políticos da época.