Por Carlos Franco*
Os grandes veículos brasileiros de mídia atropelam mais uma vez o Poder Judiciário: investigam, julgam e condenam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva numa tentativa, ao que parece, de repetir com Lula os mesmos erros da Escola Base, que deu, na década de 1990, uma bela lição aos profissionais e empresários de comunicação social de como o atropelamento do Poder Judiciário pode causar danos irreparáveis ainda que os veículos tivessem a seu favor a indignação coletiva que fomentaram por parte daqueles que acreditam, muitas vezes de boa fé, em tudo o que é veiculado na forma de reportagens e opinião de editoriais e colunistas (alguns verdadeiramente “calunistas”). O caso da Escola Base é emblemático, rendeu teses e teses acadêmicas e muito debate e reflexão por mostrar exatamente como funciona a dinâmica de uma mídia sem compromisso com a verdade e sempre disposta a garantir manchetes escandalosas como as da capa do extinto Notícias Populares, de São Paulo, que ilustra este pequeno texto.
É simples o chamado “modus operandi”, o modo de operação, de reportagens muitas vezes ditas investigativas, sem que essa operação ocorra da forma imparcial e contributiva para a sociedade como deveria. É a partir desse modus operandi que a mídia de um modo geral atropela o Poder Judiciário:
1-Primeiro é preciso ter uma autoridade, de preferência vaidosa e desejando papel de destaque na mídia, pronta para assumir a condição de celebridade, ainda que de ocasião; e, nesta condição, fornecer material exclusivo ao veículo, o que resulta no chamado “furo de reportagem”, ou seja, o veículo chega primeiro ao público com a notícia, ainda que desprovida de todas as informações necessárias para um fato real e indiscutível;
2-A partir daí, essa autoridade mediática ganha espaço, torna-se referência quando o objetivo é aparecer ao público, ou permanece em “off”, neste caso sem aparecer, mas tirando proveito do noticiário como forma de atingir na maioria dos casos algum desafeto ou concorrente quando se trata de empresas ou de algum interesse político ;
3-Passa então, a midiática autoridade, a privilegiar os veículos de comunicação mais dispostos a inflar-lhe o ego, a torná-la destaque em seu noticiário ou a “comprar” a sua informação, alimentando, assim, a cadeia do noticiário na grande imprensa e,com isso, trazendo outros veículos para a disputa em torno de suas informações e a publicação e/ou republicação da notícia que a esta altura deixa de ser local e pode passar a ganhar holofotes regionais, nacionais e, posteriormente, internacionais dependendo do caso;
4-A partir desse momento, a mídia passa a ter acesso privilegiado às investigações, ainda que preliminares e as divulga e assume para si a investigação, indo além do que de fato possui, apurando por conta própria, convocando equipes de jornalistas brilhantes da “casa” para engrossar o time de apuração, e abrindo as portas para os que estão dispostos a colaborar, não com os fatos, mas com a versão deles que já começou a se propagar na sociedade, primeiro entre os leitores, depois nos comentários nas ruas, bares e lares;
5-Nesse momento e pelo destaque dado, os consumidores de mídia que desconhecem a chamada “cozinha” onde uma reportagem é preparada e estão sempre dispostos a repetirem o que leem, a propagam aos quatros ventos. Pior: alguns chegam a criar, com o suspeito desejo de serem os mais “informados”, detalhes que sequer existem ou chegarão a existir um dia em torno do que passou a se chamar de “fato”. Nada disso evidentemente relacionado aos fatos, pois estes, nesse processo, perderam importância. A versão que a mídia veicula e reforça passa a ser mais forte que a realidade quando o jornalismo é deixado absolutamente de lado e o outro lado passo a assistir atônitos ao desdobrar espetacular e espetaculoso e midiático daquilo que por ventura o envolva. A reportagem, se verdadeira ou falsa, ganha novos interlocutores, a exemplo dos especialistas de ocasião, para sustentarem o “fato”junto ao respeitável público que passa a acompanhar esse noticiário e a exigir cada vez mais detalhes. Os ditos “especialistas” surgem, na maioria dos casos, com artigos, entrevistas e o oferecimento de alguma contribuição, algo que pode ou não ter visto, conversa de que tenha ou não participado, nada isso importa: oi importante sustentar o tema ou na maioria dos casos pegar carona no cometa da mídia que parece reluzente ao tornar o assunto obrigatório em todos os lugares;
6-É nessas circunstâncias, com a pressão a partir desse instante da chamada “opinião pública” que a Justiça irá de fato julgar o fato. Só que, neste momento, já foi atropelada e os envolvidos já foram investigados, julgados e condenados pela mídia. Corre-se, assim, o risco de a Justiça que deveria ser cega para exercer em plenitude o seu papel, analisando não aquilo que se fomenta e se comenta ao redor, mas o fato em si, tornar-se caolha, abraçando a versão do fato; não mais o fato em si, pois, e é natural que no Poder Judiciário exista também, o que é legítimo, nem sempre adequado, alguma autoridade buscando holofotes e o jornalista as reconhece facilmente, sempre estão dispostas a falar e falam, externam opiniões ainda que quebrando o protocolo de um julgamento isento; e, o que é mais dramático, em vez de conduzir o processo passa a ser conduzida pela mídia no processo;
7-Foi esse o modus operandi da Escola Base em que os sócios, acusados pela mídia apoiada em falsas denuncias de uma autoridade midiática, um delegado, foram investigados, pré-julgados e pré-condenados até que 20 anos depois pudessem receber indenizações modestas por parte da mídia pelo erro cometido por ela em nome dos grandes veículos de comunicação de massa. A Justiça, neste caso, chegou a manter imagem e reputação, ainda que o recebimento de indenizações tivesse sido procrastinado por duas décadas por força de recursos e um dos sócios, hoje ossos, tenha perdido a vida dois anos depois das primeiras sentenças condenatórias aos veículos de comunicação de massa com a determinação judicial para que pagassem as indenizações em 2014.Como sempre salientam teses acadêmicas, sobretudo no campo da História, “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. A frase que está gravada no Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, obra de 1852 do britânico Karl Marx, refere-se não à tomada de poder de Napoleão I, mas à restauração imperial de seu sobrinho Louis Bonaparte, que acabou se tornando, neste caso, a farsa. A mesma farsa que a mídia parece buscar encenar hoje, mas com a diferença de que o mundo mudou e os veículos de internet hoje estão em campo, assim como a mídia que cria ao seu redor uma legião de idiotas; que analistas da comunicação social classificam como “midiotas”.
O resultando desse comportamento midiático ganhou desdobramento nas redes sociais, onde amizades são desfeitas e a briga antecipa por, força do ato dos veículos em investigar, julgar e condenar Lula, uma verdadeira guerra civil travada em praça pública. Um país partido ao meio. A Justiça caolha e parcial até o momento está em cena nessa encenação que quebra o sentido republicano do Poder Judiciário ao deixar um dos lados da mesma moeda inatacável ainda que envolvido diretamente nas mesmas acusações a que se atribui a um dos lados, com agravantes ainda mais sérias e histórias pitorescas de alcova. É nessa toada que o Poder Judiciário corre o risco de deixar como legado um final desastroso e uma Nação partida justamente por conta de um dos pilares que tem como papel defender o Direito. Uma triste página da história que a mídia escreve deixando a justa impressão de que não aprendeu as lições oferecidas pela Escola Base.
A TV Brasil, nos 20 anos depois do episódio da Escola Base produziu na série “Caminhos da Reportagem” um belo documentário que pode ser acessado aqui, assim como noticiou uma das indenizações recebidas pelos sócios deste episódio de triste memória para a imprensa brasileira. Veja aqui. Em reportagem de 2003, o Consultor Jurídico, portal que é referência do Direito, entre estudantes, advogados, juristas e togados, listou os veículos que foram alvo de processo. Leia aqui. E neste link uma grande e especial reportagem veiculada pela TV Brasil nos 20 anos desse triste episódio.
*Carlos Franco é jornalista, formado em 1983 pela Universidade Federal Fluminense. Foi editor de a Última Hora (Rio), repórter de a Folha de S. Paulo (Rio), O Estado de S. Paulo (Rio, Brasília e São Paulo), editor-adjunto de Economia do Jornal do Brasil (Rio), editor de a Gazeta Mercantil (São Paulo) e editor-assistente de o Correio Braziliense (Brasília) além de colaborador de inúmeras publicações e atualmente editor-chefe desta revista digital.