Por Marcelo Pinto*
Muito antes de Stieg Larsson, autor da trilogia Millenium, com a jovem hacker Lisbeth Salander e o jornalista Mikael Blomkvist, um outro sueco, Henning Mankell, já havia publicado romances policiais capazes de hipnotizar milhões de leitores mundo afora — para ser mais exato, foram 40 milhões de livros vendidos em 40 línguas.
Conheci a série protagonizada pelo inspetor de polícia Kurt Wallander há pouco mais de 10 anos. Comecei pelo primeiro, “Assassinos sem rosto”, que me cativou devido a dois ingredientes básicos: acompanhava o dia a dia da equipe de investigação, numa pequena cidade ao sul da Suécia, Ystad, e a vida pessoal do Wallander — recém separado da mulher, com uma filha na casa dos 20 anos e tendo que cuidar do pai com princípio de Alzheimer — , ao mesmo tempo que narrava uma trama associada a uma temática bastante contemporânea na Europa e no mundo: o crescimento da xenofobia e do racismo.
Os primeiros livros são da década de 90 e seguem essa receita para falar, por exemplo, da corrupção policial em um país comunista do Leste europeu (Letônia), ou de uma fictícia, mas possível trama para impedir que Nelson Mandela chegasse ao poder e selasse o fim do regime sul-africano de Apartheid. As histórias, mesmo quando boa parte delas se passassem no exterior, reservavam sempre relações surpreendentes com o país nórdico. Lê-las representava uma viagem para um mundo exótico e fascinante, onde o Estado de bem-estar social parece ter viabilizado uma sociedade equilibrada, em que os serviços funcionam e onde não há diferenças de classe gritantes, mas que, naturalmente, vai revelando aqui e ali suas rachaduras, misérias e grandezas como toda aglomeração de seres humanos.
Havia, ainda, a particularidade de apresentar como cenário uma cidade de população pequena, Ystad, que aos poucos tornou-se um dos destinos do que se convencionou chamar de turismo literário. Essa modalidade de turista-fã da obra de Mankell tem sido representada, majoritariamente, por alemães, que, pelo que me consta, consomem mais as aventuras do inspetor Wallander do que aquelas protagonizadas por Harry Potter.
Assim como a brevíssima obra de Larsson — que acaba de ganhar um quarto volume, pelas mãos do jornalista David Lagercrantz, sob encomenda dos herdeiros da obra, pai e irmão do autor -, os livros de Mankell também são pontuados por momentos do mais puro clichê. Essas passagens, no entanto, são sempre superadas pelo carisma do protagonista e pelas conjunturas políticas, universais, que apresenta como pano de fundo.
Histórias como “Os cães de Riga” e “A leoa branca” são clássicos da literatura universal. Não só na minha opinião, mas na de leitores como Kenneth Branagh, fã confesso que protagonizou a série da BBC “Wallander” e cujo papel lhe rendeu o Oscar britânico, o Bafta.
Mankell, à sua maneira, foi inovador. Aliás, ele não escreveu somente policiais. Escreveu também peças teatrais e livros infantis ambientados na África. Casado com Eva, a filha do cineasta e dramaturgo Ingmar Bergman, morava em Maputo, capital de Moçambique, onde mantinha o Teatro Avenida. Além de se dedicar à literatura e ao teatro, o escritor também financiava iniciativas de combate à proliferação da Aids no continente africano.
Mia Couto era seu amigo pessoal. Nas redes sociais, o escritor moçambicano rendeu sua homenagem ao colega sueco: “Aprendi muito com ele…na procura do que é o sonho…ele sempre me incentivava: vai ter com as pessoas, não procures a história, procura o sonho que está por trás da história…isso quase se transformou num método para mim”.
Lembro quando Mankell anunciou que estava com câncer, em fevereiro do ano passado, por meio de sua página no facebook. Disse que estava otimista e que ia tentar superar a doença. Não conseguiu. Kurt Wallander e todos nós, seus leitores, sentiremos muito sua falta.
Embora nunca se saiba, é improvável que alguém escreva uma nova aventura de Kurt Wallander, a exemplo do que aconteceu com a hacker e o jornalista criados por Stieg Larsson que ganharam uma nova — e elogiada — história. Até porque, Henning Mankell, ao contrário de Larsson, teve tempo de deixar uma obra robusta, incluindo 40 romances, 11 deles dedicados às histórias de Wallander.
*Marcelo Pinto é jornalista. O texto aqui revisado e atualizado foi publicado originalmente no Medium, onde escreve sobre literatura.