Por uma semana, João Pessoa, a capital da Paraíba se tornou a capital mundial da Internet. Mais de 6 mil pessoas se reuniram presencialmente e online entre os dias 10 e 13 de novembro para discutir temas urgentes e desafios emergentes como cibersegurança, direitos humanos online e como as tecnologias podem trabalhar em prol do desenvolvimento sustentável.
Trata-se do maior fórum aberto do mundo sobre Internet. E neste ano João Pessoa, na Paraíba, foi o centro do mundo para pesquisadores, cientistas, ativistas, formuladores de políticas públicas, jornalistas, estudantes, empresários representantes de governos e da ONU e, inclusive, alguns curiosos.
O Fórum de Governança da Internet (IGF) da ONU, que aconteceu entre os dias 10 e 13 de novembro, atraiu cerca de 6 mil pessoas – a metade presencialmente, os demais participando ativamente online. Em sua décima edição, o IGF terá seu futuro decidido em uma reunião na Assembleia Geral da ONU, já que o mandato de 10 anos chega ao fim. Espera-se um consenso sobre a renovação do mandato do Fórum, enquanto o México já se ofereceu para sediar a próxima edição, em 2016.
Os mais de 3 mil participantes vêm de 116 países. No total, 1.338 pessoas trabalharam no evento, entre funcionários e voluntários nacionais, pessoal de segurança local e da ONU e outros funcionários da ONU. Um total de 174 jornalistas e outros comunicadores cobriram o evento.
Durante todos os encontros, muitos dos participantes destacaram o vínculo entre as políticas públicas “digitais” e os recentemente aprovados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), parte da chamada Agenda 2030.
Em discussão, questões que – apesar de técnicas, muitas vezes – envolvem o futuro da Internet e das políticas públicas no setor, como “neutralidade da rede” e “zero rating”. Temas urgentes diante de um importante evento que ocorrerá no final deste ano em Nova York – a Reunião de Alto Nível CMSI+10 (ou WSIS+10, da sigla em inglês) da Assembleia Geral da ONU –, realizada nos dias 15 e 16 de dezembro de 2015.
Parte do processo da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) – as duas conferências ocorridas em 2003 e 2005 com o objetivo de acabar com a desigualdade digital que exclui 4 bilhões de pessoas, entre outros temas –, os Estados-membros e outras partes interessadas já disponibilizaram o rascunho do documento final, base para as negociações textuais durante a consulta informal agendada ainda para novembro.
Durante esta semana, questões como direitos das mulheres e das crianças online, liberdade de expressão na Internet, direitos das pessoas com deficiência, segurança cibernética, criptografia e cooperação técnica fizeram parte de muitas discussões – e incluíram questões emergentes como o “direito de ser esquecido” e as “heranças digitais” – a gestão das memórias daqueles que morreram.
De acordo com um relatório recente das Nações Unidas, os direitos humanos no mundo real – ou “offline” – devem ser respeitados também “online”. O “direito a ser esquecido”, por exemplo, está em diálogo direto com o direito à memória, à verdade ou o interesse público. Para muitos, os direitos à privacidade e à liberdade de expressão devem ser considerados como complementares.
Algumas das oficinas, por exemplo, levantaram a preocupação sobre o abuso contra as mulheres no mundo online, enquanto os governos ainda não conseguem, em muitos casos, abordar o tema por meio de mecanismos eficazes de aplicação da lei. O problema, muitos concordaram, depende em grande parte de contextos sociais locais, mas há um consenso de que, além de uma violação dos direitos humanos, esta é uma questão premente e global, assim como o é o crescente discurso de ódio e o extremismo violento no ambiente da rede mundial.
Discurso de ódio: entender para combater
O discurso de ódio foi um dos grandes desafios debatidos durante o IGF em João Pessoa. Um dos assessores em Comunicação e Informação da UNESCO, Guilherme Canela pondera: “Temos um problema de definição. Não sabemos exatamente do que estamos falando e quando estamos falando sobre discurso de ódio. Discurso de ódio é tudo do que não gostamos ou com o qual nos sentimos ofendidos?”, questiona. “Se liberdade de expressão se trata de proteger coisas sobre as quais somos a favor, é fácil.”
A UNESCO lançou durante o evento uma publicação em que busca a cooperação entre todos os envolvidos no tema – governos, sociedade civil, empresas, especialistas – para mapear o fenômeno do discurso de ódio.
Campanhas, iniciativas e estudos são agregados como forma de dar subsídios para que as políticas públicas se baseiem em uma metodologia mais concreta e mais tangível, voltada para a ação com base em dados.
Como se mover das discussões jurídicas para políticas públicas? Como ter mais pesquisas e debates para encontrar áreas comuns em que é possível um acordo? Se o Poder Judiciário determinar que algo é discurso de ódio, como agir na prática, já que nem sempre é tão fácil retirar de circulação conteúdos online? Como treinar os juízes e promotores para que entendam essa nova realidade? Estas são algumas questões colocadas pelo representante da UNESCO.
Equilibrando-se entre a liberdade de expressão e os demais direitos humanos
A Internet, comenta um outro participante, não traz substancialmente novos problemas – muitos deles já existiam, e a Internet apenas ajuda a ampliá-los.
Como lidar com as tensões da liberdade de expressão e equilibrar o exercício dos direitos online, a fim de promover um ambiente saudável na Internet que busque ampliar a liberdade de expressão, de privacidade e de igualdade de direitos de todos e todas, se perguntaram alguns dos participantes durante um dos diálogos.
Outra questão urgente, os riscos que as crianças enfrentam online – a exposição a conteúdos inapropriados, o contato inadequado por estranhos e a invasão de privacidade, por exemplo – foram levantados em algumas das oficinas, uma vez que esta é uma preocupação crescente em diferentes países: da Indonésia e Reino Unido ao Brasil e a França.
Os princípios do multilateralismo – a cooperação entre os países sobre um determinado tema – e o “multissetorialismo” – a cooperação ampliada, entre todos os atores sociais – foram um tema recorrente.
As parcerias público-privadas e o diálogo entre os principais interessados no IGF dependerão, porém, da continuação do seu mandato, e isso pode ser alterado pelos Estados-Membros das Nações Unidas em dezembro.
Outro tema importante foi o da infraestrutura de telecomunicações, que está diretamente ligada ao acesso à informação e à luta contra o chamado “fosso digital”, a desigualdade no acesso às tecnologias.
Embora muitos dos participantes falem em “conectar o próximo bilhão”, alguns funcionários da ONU ressaltam a importância de se unir a todos os 4 bilhões de “desconectados”.
A Internet apoia o desenvolvimento sustentável. Mas como?
Para todos participando do Fórum de João Pessoa, há um consenso: a Internet é um potencial motor para o desenvolvimento sustentável.
A questão é: o quão rápido podem as tecnologias de informação e comunicação (TICs) ajudar o mundo a alcançar os objetivos e metas da Agenda 2030? Quão rápido podem os “desconectados” se tornar “conectados”, e como isso poderia ser útil para as questões mais importantes, como por exemplo as mudanças climáticas, segurança, saúde e educação?
É bem verdade que, globalmente, já são 3,2 bilhões de pessoas usando a Internet, das quais 2 bilhões são de países em desenvolvimento. A proporção de domicílios com acesso à Internet aumentou de 18% em 2005 para 46% em 2015.
Além disso, a penetração da Internet cresceu de pouco mais de 6% da população global em 2000 para 43% em 2015. E, ao final de 2015, haverá mais de 7 bilhões de assinantes de um serviço de telefone celular, correspondendo a uma taxa de 97% de penetração, acima dos 738 milhões em 2000.
A ONU se pergunta, no entanto: e os demais 4 bilhões de “desconectados”? Na África Subsaariana, por exemplo, menos de 21% da população utiliza a Internet, e nos países menos desenvolvidos esse número é inferior a 10%. Os níveis mais baixos de acesso à Internet são encontrados principalmente nesta região, com Internet disponível para menos de 2% das populações na Guiné, Somália, Burundi e Eritreia.
No mundo em desenvolvimento, as mulheres têm acesso à Internet cerca de 25% menos do que homens. Esta diferença sobe para quase 50% em algumas partes da África Subsaariana.
O desenvolvimento econômico não é um assunto menor quando se trata do potencial da Internet: para cada aumento de 10% na penetração da banda larga no mundo em desenvolvimento, o produto interno bruto (PIB) aumenta em quase 2% em média.
Não à toa, a interface entre o desenvolvimento econômico, a segurança e os direitos humanos estiveram presentes em quase todos os debates.
Evento em João Pessoa dá força para a continuidade do Fórum da ONU
A cerimônia de encerramento contou com uma série de intervenções de diversos participantes, incluindo representantes brasileiros e da juventude.
“Existe uma certa contradição que o planeta vivencia. Temos um nível de tecnologia acumulado extremamente grande e convivemos com coisas de dois séculos passados”, disse o governador do Estado da Paraíba, Ricardo Coutinho.
“É inconcebível olhar para o semiárido do mundo e perceber a falta de boa convivência, da produtiva convivência do ser humano com aquela região. É preciso usar a tecnologia. É precisar tornar acessível a tecnologia para que as pessoas possam ser mais, para que as pessoas possam viver mais felizes”, acrescentou. “Me parece que as grandes invenções da Humanidade deveriam servir, em primeiro lugar, para fomentar a paz e a Justiça”, disse Coutinho.
O representante do governo brasileiro destacou que o país se sentiu honrado por ter sediado pela segunda vez o Fórum de Governança da Internet. “O IGF 2015 representou uma grande celebração do multissetorialismo”, disse o subsecretário-geral de Meio Ambiente, Energia, Ciência e Tecnologia do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, o embaixador José Antônio Marcondes de Carvalho.
O IGF de João Pessoa demonstrou, disse o representante do governo brasileiro, que o Fórum pode evoluir e produzir “contribuições tangíveis” e, dessa forma, ter impacto mais substancial sobre a evolução da Internet, sobretudo em termos de políticas públicas. “O Fórum de João Pessoa transmite uma mensagem inequívoca da importância e da legitimidade do IGF, e da relevância de sua continuidade”, disse Marcondes.
Ele lembrou que co-facilitadores do WSIS+10 estiveram presentes no Fórum e solicitaram um resumo dos encontros, que deve servir de insumo adicional para as negociações em Nova York no final do ano. “Temos a convicção de que este resumo contribuirá para enriquecer e fortalecer a diversidade de opiniões no processo de revisão do WSIS”, destacou.
Rumos da governança e do diálogo
Após dez anos de existência, o IGF continua a fornecer uma plataforma de diálogo e intercâmbio de pontos de vista multissetorial, imparcial e independente, e de compartilhamento de conhecimentos e melhores práticas sobre políticas relativas à Internet.
Dez anos depois de sua primeira edição – e o Brasil sediou duas delas, com o Rio de Janeiro recebendo a edição de 2007 –, o IGF é um fórum ainda mais aberto a todas as pessoas com interesse em questões de governança da Internet. E está ainda mais maduro.
Há dez anos, eram muitos os que confundiam a palavra “governança” com “governos”, o que costumava provocar algum repúdio pelo medo do controle sobre um ambiente que deve ser livre e independente.
Hoje, no entanto, chegamos a um consenso amplo e irrestrito: sem uma governança multissetorial, a Internet corre o risco de perder sua principal força criativa e libertária.