Leia a carta:
Nós, cidadãos e organizações da sociedade civil comprometidos com a saúde e o direito humano à alimentação adequada, vimos através desta manifestar nosso repúdio à parceria estabelecida entre o senhor e a Sadia para o projeto “Saber Alimenta”. Este programa prevê a realização de supostas “atividades educativas” em escolas, ao passo que sabemos que crianças devem ser protegidas contra práticas abusivas de comunicação mercadológica, como ações de merchandising dentro do ambiente escolar. A alimentação adequada e saudável é um direito humano, reconhecido em inúmeros documentos internacionais, nacionais e incluído na constituição brasileira. Não queremos que nossas crianças sejam transformadas em promotoras de produtos de qualquer marca. Esperamos que, diante de nossas considerações expostas ao longo desta carta, o senhor tome as medidas necessárias para impedir a exposição de crianças aos produtos e aos programas da Sadia e reconsidere sua decisão de vincular sua imagem a esta parceria.
Direito à Alimentação Adequada e Saudável
O Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável (DHAAS) é composto por duas dimensões indissociáveis: estar livre da fome e ter acesso a uma alimentação adequada. Entretanto, a alimentação foi transformada em mercadoria e, por isso, esse direito está permanentemente ameaçado, mesmo para aqueles que não têm restrições financeiras para comprar alimentos. A AAS não é garantida apenas por características específicas dos produtos alimentícios (equilíbrio nutricional, menor presença de agrotóxicos etc.). A AAS pressupõe o acesso permanente e regular, de forma socialmente justa, a uma prática alimentar adequada aos aspectos biológicos e sociais dos indivíduos, de acordo com o ciclo de vida e as necessidades alimentares especiais. Deve estar pautada no referencial tradicional local e atender aos princípios da variedade, equilíbrio, moderação, prazer (sabor), às dimensões de gênero e etnia, e a formas de produção ambientalmente sustentáveis.
É sabido que o mercado mundial de alimentos é dominado por poucas transnacionais que controlam praticamente todas as etapas do sistema alimentar. Isso gera, em nível global, exclusão, pobreza, fome, obesidade e danos ambientais e sociais no limite da catástrofe. Para o desenvolvimento de ações efetivas de promoção da AAS, é imprescindível ter clareza de seus determinantes e consciência desse cenário.
Os Estados têm a obrigação de proteger, promover e garantir o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). A legislação brasileira proíbe a publicidade que se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança (art. 37 § 2° do Código de Defesa do Consumidor). Segundo o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), é abusiva “a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço” (Resolução 163 de 2014). De acordo com essa Resolução, “comunicação mercadológica” é toda e qualquer atividade de comunicação comercial, incluindo o merchandising e ações por meio de shows e apresentações, mesmo e inclusive aquelas revestidas de ações chamadas de “educativas”. A sociedade civil brasileira vem atuando, por meio de diversas organizações e coletivos, para que os direitos das crianças sejam protegidos e promovidos. Um dos espaços fundamentais para isso é o ambiente escolar.
Alimentação no ambiente escolar
A escola é um espaço privilegiado para desenvolvimento de valores e hábitos e para a promoção da cidadania e da saúde. O Brasil possui um dos maiores, mais longevos e mais arrojados programas públicos de alimentação escolar do mundo, cujos princípios e diretrizes convergem com a garantia do DHAA. Certamente, ainda há muito o que melhorar, mas são incontestáveis os avanços ocorridos nos últimos anos no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Exemplo disso é a lei que está em vigor desde 2009, que estabelece que pelo menos 30% dos recursos federais repassados aos municípios devem ser destinados à aquisição de alimentos diretamente da agricultura familiar. Esta medida gerou um circulo virtuoso para a economia local, para a melhoria da qualidade nutricional das refeições servidas e para o resgate do patrimônio alimentar local.
Outro elemento fundamental do PNAE são as ações de educação alimentar e nutricional (EAN), que devem ser desenvolvidas diretamente pelos profissionais de educação em parceria com a equipe técnica local do programa – que podem contar com a parceria com profissionais da saúde e de outras áreas (meio ambiente, assistência social etc.). Ainda que sejam muitos os desafios para a qualificação dessa prática e para a sua articulação com o currículo escolar, muito se tem avançado em relação a estas ações no ambiente escolar.
Questões éticas e sociais
Uma questão chave dessa agenda é a garantia de que as ações de EAN sejam absolutamente protegidas de conflito de interesses (CoI). O CoI está presente, por exemplo, quando são estabelecidas parcerias com empresas que possuem produtos, princípios e práticas divergentes (e, em geral, antagônicos) aos princípios e diretrizes que norteiam as políticas públicas de promoção e garantia da AAS. Estas parcerias são claramente uma situação de CoI, porque há um confronto entre o interesse público (promover a AAS na perspectiva que apresentamos no início deste documento) e o interesse privado (ampliar o conhecimento da marca, construir/consolidar uma imagem positiva da empresa, apresentar novos produtos de seu portfólio e fidelizar o mais precocemente possível a clientela, com o objetivo, ao fim e ao cabo, de ampliar suas vendas e seu lucro).
Reconhecemos como conflituosas e abusivas as iniciativas de EAN desenvolvidas em escolas por (ou em parceria com) indústrias de alimentos e outras empresas cujas práticas atinjam os interesses da saúde coletiva
Ficamos surpresos pelo fato de o senhor, um profissional que se apresenta como ativista social, se dispor a atuar em espaços sociais (como são as escolas) em um determinado país que não o de sua origem sem estabelecer qualquer diálogo com os ativistas e os movimentos sociais nele existentes e sem saber se, de fato, a proposta que traz faz sentido para esta realidade. No caso do Brasil, são inúmeros os movimentos, entidades e coletivos que atuam há muitos anos na agenda de promoção da alimentação adequada e saudável que foram surpreendidos com essa parceria com a Sadia e que a identificam como nefasta para o trabalho que vem sendo construído há muitas décadas. O que pode ser uma boa solução para o seu país pode ser uma prática inadequada e até nociva em outras realidades. Diferentemente do seu país, em que mais de 60% das calorias consumidas pela população vêm de produtos ultraprocessados, no caso do Brasil, em que esse número é de 30%, as principais ações de promoção da AAS são a preservação e o resgate da cultura alimentar e não a promoção de produtos ultraprocessados pretensamente mais saudáveis, como faz a campanha que o senhor e a Sadia estão propondo.
Ademais, vale ressaltar que o sistema integrado de produção de frango adotado pela Sadia é alvo de críticas que vão muito além do bem estar animal, uma vez que deixam os produtores associados em situação de extrema vulnerabilidade social – o que configura um dos importantes desafios a serem enfrentados na promoção de um sistema alimentar saudável e sustentável.
Marketing social e merchandising
Consideramos profundamente incoerente que um profissional como o senhor, que vem construindo sua trajetória valorizando as práticas alimentares locais, o meio ambiente e o comércio ético, associe seu nome e sua prática a uma empresa como a Sadia, que: comercializa produtos de “conveniência” como pratos prontos e embutidos, como apresuntado e salsichas; que, pela natureza de seu negócio, objetiva ampliar as vendas e o consumo desses produtos alimentícios ultraprocessados; e que, ainda, possui uma linha de produtos denominada em seu website de “alimentação escolar”, que inclui carnes processadas e embutidas, como salsichas de peru, salsichas hot dog e empanados de frango e aves. O Guia Alimentar para a População Brasileira**, publicado pelo Ministério da Saúde em 2014 e considerado por especialistas de diversos países como o mais arrojado do mundo, orienta que seja evitado o consumo de tais produtos alimentícios. Como se não bastasse, nas matérias de divulgação da campanha – que é um dos eixos da parceria – consta a informação de que seu material “está customizado conforme as diretrizes do Guia Alimentar para População Brasileira”, o que está longe de ser verdade. Divulgar esse tipo de mensagem na mídia é um desserviço para a difusão adequada das mensagens do Guia Alimentar e indica práticas e intenções duvidosas.
A parceria com a Sadia prevê a realização de supostas “atividades educativas” em escolas brasileiras por meio do projeto “Saber Alimenta”, apresentado como um “projeto pedagógico que ensina as crianças a serem protagonistas na mudança dos hábitos alimentares dentro de casa e cria uma relação mais próxima delas com os alimentos saudáveis”. Na verdade, a campanha proposta é uma prática de comunicação mercadológica (merchandising da Marca Sadia direcionada ao público infantil dentro de escolas) maquiada de ação educativa, e por isso abusiva, conforme definido pelo CONANDA. De acordo com o site da Sadia, o projeto “Saber Alimenta” da Sadia chegará a centenas de escolas em São Paulo e Santa Catarina, visando alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental I, ou seja, crianças com idade entre 6 e 10 anos!! Trata-se de um público extremamente vulnerável, cuja deficiência de julgamento e experiência, própria de sua faixa etária, não lhes permite reconhecer os objetivos finais de persuasão e fidelização dessa ação de marketing. Esse projeto pode, portanto, ser caracterizado como uma ação de branding, cujo objetivo final é desenvolver positivamente a reputação da marca e de seus produtos e, assim, fidelizar o público consumidor desde a infância.
A título de ilustração, citamos dois exemplos de abusividade e enganosidade que podem ser observados na campanha: (a) a letra inicial do projeto “Saber Alimenta” é grafada da mesma forma que a letra inicial da logomarca da Sadia e (b) as receitas e outros materiais da campanha estimulam o consumo de produtos ultraprocessados da Sadia apresentando-os como “deliciosamente saudáveis”, o que, conforme já apontado, não atende às recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira.
Somos pais, mães, cidadãos, educadores, profissionais de saúde, pesquisadores, organizações de defesa do consumidor, da saúde, do direito humano à alimentação adequada, da comida de verdade, da construção de sistemas alimentares sustentáveis, justos e saudáveis, e estamos convencidos de que a celebração de parcerias com empresas que adotam práticas de marketing dirigidas ao público infantil em nada contribui para a promoção da AAS; ao contrário, pode comprometer ações de EAN e outras que de fato promovem mudanças estruturantes. Não queremos que nossas crianças sejam transformadas em promotoras de produtos de qualquer marca. Não é isso que entendemos como protagonismo e autonomia, dois princípios essenciais às estratégias de EAN desenvolvidas em nosso país.
Assim, mediante os motivos expostos, esperamos que o senhor Jamie Oliver utilize seu carisma e força midiática para a promoção da saúde e não para fortalecer o marketing de empresas cujos interesses comerciais se sobrepõem aos interesses públicos.
Colocamo-nos à disposição para esclarecer e aprofundar os vários pontos apresentados nessa comunicação.
Assinam:
– AAO – Associação de Agricultura Orgânica
– ACAN – Associação Catarinense de Nutrição
– ACT – Aliança de Promoção da Saúde
– AGENDHA – Assessoria e Gestão em Estudos da Natureza, Desenvolvimento Humano e Agroecologia)
– Alianza ENT (Enfermidades non transmisibles) – Peru
– ASBRAN – Associação Brasileira de Nutrição
– Associação Alagoana de Nutrição – ALNUT
– Associação de Nutrição do DF – ANDF
– Associação de Nutrição do Estado do Espirito Santo – ANEES;
– Associação de Nutrição do Estado do Rio de Janeiro – ANERJ
– Associação Gaúcha de Nutrição – AGAN;
– Associação Paulista de Nutrição – APAN
– Associação Pernambucana de Nutrição – APN
– Associação Slow Food do Brasil
– Associação Sul-Mato-Grossense de Nutrição – ASMAN
– Canal do Campo a Mesa
– Centro Ecológico Rio Grande do Sul
– Conselho da Cultura Alimentar de Curitiba
– Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional de Caxias do Sul
– Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de Santa Catarina – Consea/SC
– Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional de Sergipe – Consean/SE
– Conselho Regional de Nutricionistas – 10a Região – CRN 10
– Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Sergipe – DNUT/UFS
– FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
– CERESAN – Centro de Referência em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional– FENACELBRA – Federação Nacional das Associações de celíacos do Brasil
– FBSSAN – Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar
– FIC México – Fundação Interamericana do México
– Gestores do projeto interinstitucional “Alimentos bons, limpos e justos: ampliação e qualificação da participação da Agricultura Familiar brasileira no movimento Slow Food”
– IBFAN – Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar
– IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
– Instituto Alana – Projeto Criança e Consumo
– Instituto Kairós
– Instituto Pólis
– Instituto REAJA – Rede de Estudos e Ações em Justiça Alimentar
– ISPN – Instituto Sociedade, População e Natureza
– MILC – Movimento Infância Livre do Consumismo
– MSP Brasil – Movimento pela Saúde dos Povos Brasil
– Núcleo de Alimentação e Nutrição em Políticas Públicas da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
– Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições da Universidade Federal de Santa Catarina (NUPPRE-UFSC)
– NUPENS – Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo
– Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição. Universidade de Brasília
– Observatório de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado de Sergipe (OSANES)
-ONCB – Organização Nacional de Cegos do Brasil
– PROSAN – Promoção da Segurança Alimentar e Nutricional no Contexto da Alimentação Escolar da Universidade Federal de Viçosa
– Rebrinc – Rede Brasileira Infância e Consumo
– Rede Brasileira de Professores de Universidades Públicas
– Rede de Mulheres Negras para Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional/REDESSAN
– REDENUTRItodos
– SINESP – Sindicato dos Nutricionistas do Estado de São Paulo
– SINUSC – Sindicato dos Nutricionistas no Estado de Santa Catarina
– Slow Food Educação
– UBM – União Brasileira de Mulheres
– WPHNA World Public Health Nutrition Association
* Esta carta foi motivada pela divulgação da parceria do Frigorífico BRF (detentor das marcas Sadia, Perdigão e Qualy) com Jamie Oliver, chef internacional, conhecido pelo seu movimento “Food Revolution”, que tem como focos de ação: educação alimentar, nutrição, desperdício alimentar, sustentabilidade, culinária e comércio ético (o que inclui o bem estar dos animais criados para consumo humano). Esta parceria ganhou notoriedade e gerou controvérsias pelo volume do investimento financeiro envolvido, pela união de atores com práticas aparentemente não convergentes, pela ação publicitária massiva e articulada para o seu anúncio e pelo público de interesse (escolares, em uma das vertentes de ação)
**http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo=publicacoes/guia_alimentar2014